segunda-feira, 8 de julho de 2013

"Culpado" - As 5 primeiras partes





"CULPADO" - AS 5 PRIMEIRAS PARTES EM APENAS UM POST

As gotas de chuva não cessavam naquele dia cinzento. Os jardins verdes que rodeavam toda a vila tornavam-se pálidas amedrontadas pelas nuvens carregadas e ameaçadoras. O silêncio voava nos ventos fortes que obrigavam os pássaros a refugiarem-se nos abrigos mais próximos deixando as brincadeiras ocasionais para depois. O senhor Manuel, alto, barba branca, de aproximadamente sessenta anos escondia-se na sua loja de recordações segurando o prato de sementes que havia preparado para as pombas. 

A vila já não se lembrava de um dia de tempestade como este. O ar agitado carregava metade de um poema escritor por um jovem romântico que apaixonado por uma das raparigas mais bonitas da escola, já os escrevia há dois anos mas nunca os assinava. O pequeno pedaço de papel caiu em uma pequena poça de água pisada poucos momentos depois por um rapaz de doze anos que corria fugindo da tempestade, a sua mão direita agarrava a mão esquerda de uma rapariga que sorria. O miúdo, qual príncipe, qual salvador de donzela em perigo trilhava o caminho mais rápido e menos perigo para um porto de abrigo. Assim que toda a agitação começou, o rapaz lembrou-se logo do apartamento de um tio que estava emigrado e do qual tinha a chave porque no dia anterior tinha auxiliado a mãe na limpeza da habitação.

Os dois jovens entraram na casa, primeiro andar esquerdo do número treze da rua número vinte e dois da vila. A porta altiva e acastanhada ficou escancarada enquanto os dois jovens tiravam os casacos. A rapariga encaminhou-se para a pequena sala que mal estava mobilidade, apenas uma mesa e um sofá faziam parte daquele espaço enquanto o jovem fechou a porta.
Ela sentou-se no sofá vermelho e praticamente novo, ele sentou-se ao lado.
- Obrigado, Miguel. – agradeceu ela sorrindo – És o meu cavaleiro andante.
- Não tens de quê, Lara – respondeu Miguel – Estamos bem agora.

Miguel e Lara tinham apenas doze anos mas já se sentiam adultos, a verdade é que as suas conversas e tudo aquilo que faziam era diferente dos outros. As brincadeiras normais da idade eram substituídas por conversas sérias. Apaixonaram-se rapidamente. E neste dia de tempestade iriam um passo mais à frente.
A tempestade abrandou, Lara olhava pela janela, o seu rosto estava triste. Miguel levantou-se da cama e abraçou-a.
- Não gostaste? – perguntou Miguel – Sê sincera.
- Magoou-me um pouco. – respondeu Lara – Mas não sei…é estranho.
- Gosto muito de ti.
- Eu também.

Algumas horas depois, Miguel ajudava o seu pai na loja de artigos de pesca. O senhor Carvalho, pai de Miguel, era dono da “Pescar com companhia” há mais de vinte anos, paragem obrigatória para uma vila cheia de pescadores. O jovem de doze anos passava horas a olhar para todo aquele material e fazia companhia ao pai em várias tardes de pescaria, porém o seu sonho era entrar mesmo em um barco, porém ainda era novo demais. A loja era pequena mas possuía tudo aquilo a que um pescador faz falta, o cheiro “de pesca” entranhava-se em Miguel que o adorava. O jovem estava a acabar de varrer a loja quando entrou Fonseca, gnr já de alguma idade e com algum peso a mais, conhecido por todos na vila.
- Meu jovem – começou ele apontando para Miguel – receio que tenhas de vir comigo.
- Como assim? – questionou o senhor Carvalho – O que é que o meu filho fez?
- A menina Lara Santos fez uma queixa de violação contra o seu filho. O Miguel está em maus lençóis.

**

As gotas de chuva que soavam nas janelas anunciavam o dia seguinte à tempestade. O chão daquele quarto estava infestado por puzzles de roupas espalhadas por todos os locais possíveis. Na porta semiaberta entre o quarto e a sala um pequeno gato branco e de pelos enrolados miava sem descanso. A mesa de trabalho estava completamente desarrumada com papéis à deriva, o pc tinha-se entrado em suspensão automática depois de reproduzir diversas listas Spotify. As roupas misturavam-se no chão anunciando uma noite de paixão. O despertador tocou. Ela esfregou os olhos, olhou para o seu companheiro e suspirou, de seguida parou o despertador e começou a recolher a sua roupa do chão para se vestir. Fez uma carícia no gato e dirigiu-se à cozinha, colocou uma tigela de whiskas no chão para o seu animal de estimação, serviu-se um café e fumou um cigarro para relaxar. Procurou o seu telemóvel no meio da confusão do quarto e assim que o encontrou assustou-se, mais de uma dezena de chamadas perdidas de António, o seu irmão António Carvalho. Ela, Maria, vivia na cidade, a alguns quilómetros da vila, porém apesar da proximidade os dois mal falavam.

- António? – disse mal ouvi um olá tremido do outro lado – O que aconteceu?
A situação foi explicada rapidamente. O seu sobrinho havia sido acusado de violação. A esperança de António recaía em Maria, sua irmã, advogada, as diferenças entre os dois tinham que ser postas de lado pelo bem de Miguel. António contou tudo em lágrimas, como Fonseca, gnr natural da vila e já perto da reforma, apareceu na loja de pesca, o que ele disse, como ele prendeu Miguel perante o espanto de António. O desespero do filho enquanto era arrastado pelo velho conhecido Fonseca gritando que não tinha feito nada de mal.

Maria dirigiu-se à casa de banho e tentou-se recompor, a chamada tinha-lhe roubado algumas lágrimas. De seguida encaminhou-se até ao quarto e chamou por Marco, seu companheiro de cama.
- Vamos, levanta-te! – exclamou ela – Tenho que sair.
- O quê? – exclamou ele confuso e ainda cheio de sono – Tão cedo?
- Provavelmente vou ficar uns dias na vila.
- Assim de repente?
- Marco, Marco…- sorriu ela abeirando-se dele – Pensei que isto estava claro – roubou-lhe um beijo – Não te devo satisfações nenhumas. Isto é só sexo.

***

O olhar de Miguel misturava tantos sentimentos, surpresa, medo, revolta, tristeza. Tudo aquilo parecia ser filmado em câmara lenta, era levado para dentro de um carro como se fosse um criminoso, mas que erro tinha ele cometido?  Observou todos os que o rodeavam, começou por Lara que assim que notou o olhar de Miguel desviou o seu rosto, notava-se o sofrimento da rapariga e o filho de António questionava-se no porquê de Lara ter feito o que fez, não havia resposta que o convencesse. Perto de Lara estavam vários familiares da rapariga que o insultavam, dois primos ainda tentaram atingi-lo porém os guardas não o permitiram. Imediatamente ao lado de Lara estava o pai da rapariga, homem de aparência soturna, alto e magro, barba feita e relógio rolex no pulso, o seu rosto denunciava um sorriso saciado. Do lado oposto da rua estava o pai António, que não controlava as suas lágrimas apesar do abraço sentido da sua irmã Maria. Depois da morte da sua mulher, derrotada por uma doença prolongada, o dono da loja de artigos de pesca enfrentava novo sofrimento. Mais afastado estava o senhor Manuel, o dono da loja de recordações na sapiência da sua idade refutava os argumentos do jovem Diogo, seu filho, que o tentava convencer que Miguel era culpado. O pai de Diogo conhecia Miguel desde pequeno e não tinha dúvidas da sua inocência. Porém, apesar de todos os esforços de Maria, o veredicto do júri culpou Miguel. O filho de António partia da vila para uma casa de acolhimento na cidade. Acabavam-se as tardes de pescaria, as corridas a pé pelos atalhos da vila com os amigos, os mergulhos no mar, os jogos de cartas inventados pelo Chico ao final da tarde, as leituras no jardim, a bola de carne da senhora Graça e as brincadeiras do senhor Carlos, o dono do café onde Miguel parava desde criança.

O rosto de António estava cansado, desde que o seu filho fora acusado de violação que o homem não pregara olho. A esperança em Maria tinha acabado, apesar da irmã ter tentando de tudo o seu filho estava a ser retirado dos seus braços sem que este pudesse fazer nada. Sabia que o seu filho era inocente, era um amor de rapaz, trabalhador e obediente.
O carro arrancou, Miguel em lágrimas olhou para trás, ignorou os insultos de algumas pessoas e concentrou-se na sua família. Mal tinha partido e as saudades já o invadiam. O que o esperaria?
- Anda. – pediu Maria – António, temos que ir.
- Eu quero o meu filho. – afirmou o irmão a tremer – Quero o meu filho.
Ainda com os gritos de “violador” a ecoarem na sua mente, o dono da loja de artigos de pesca deixou-se cair no chão sem forças repetindo “é mentira”.
Maria abraçou-o.
- A justiça será feita – sussurrou.

O carro conduzido por Maria havia arrancado a alguns minutos, no ar ainda se sentia o cheiro a motor. A tristeza assolava todo o rosto de António. Nas ruas viajava um silêncio perturbador, as pessoas numa mistura de ódio e angústia passavam por ele sem dirigir qualquer palavra. Uns porque o achavam responsável daquilo que o filho fez, outros porque apesar de não acreditarem que o seu filho fosse culpado não sabiam o que dizer. O homem parecia ter envelhecido demasiados invernos nos últimos dias, a atitude energética havia sido substituída por um sentimento de desânimo.  Era o primeiro dia sem o seu filho, depois daqueles dias demasiado grandes entre o dia em que o seu rebento tinha sido acusado e julgado.

Algumas horas de viagem depois, finalmente Miguel chegava ao seu destino. A casa que o ia receber era portentosa, com mais janelas e divisões que uma pessoa podia contar. Pintada de branco fresco denunciava os seus poucos anos de existência. O rapaz foi levado pelo motorista e pela responsável da acção social até à porta da cor do fruto do castanheiro. Uma senhora avançada em idade, de pernas trémulas e engelhadas cumprimentou as visitas.
- É ele? – questionou num tom de voz combalido – É o novo?
- Sim. – respondeu a profissional da acção social – Fica aqui a partir de hoje. Nós vamos indo.
Miguel observou o carro a arrancar dali virando-se depois para a velha.
- Não te preocupes meu rapaz, serás muito feliz aqui. Vou mostrar-te o teu quarto. Terás três companheiros. Nunca te sentirás sozinho. Além disso, o senhor Jorge, responsável deste espaço é uma excelente pessoa que providenciará tudo aquilo que tu precisares.
O rapaz em passos tímidos entrou naquela casa arregalando os olhos de espanto tal o tamanho do salão principal.
- É enorme não é? – sorriu a idosa – É necessário. São mais de cem crianças.
Subiram umas escadas de madeira que pareciam deslocadas daquela casa, tinham um aspecto antigo e rangiam a cada passo. A mulher parou junto a uma porta e fez-lhe sinal para entrar.
- Aqui será o teu quarto. O Guilherme, o Nuno e o Vasco estão aí dentro. Pousa as tuas coisas e aproveita para os conhecer.

Miguel entrou sozinho, a porta foi fechada nas suas costas. Três rapazes estavam sentados na mesma cama, a conversa animada foi interrompida pela chegada do rapaz novo. Miguel levantou a mão direita e soltou um envergonhado “olá”. Um deles saltou imediatamente da cama e encaminhou-se para ele.
- És tu o forte não és? – interrogou em tom de escárnio – O que violas raparigas indefesas.
O jovem ficou atrapalhado sem saber o que dizer.

- Eu sou o Vasco. – disse o miúdo que se tinha aproximado. – Que fique claro que eu não gosto de ti e que vou fazer da tua vida um inferno!

O quarto onde tinha ficado Miguel, era enorme. Cada um dos quatro rapazes tinha a sua cama, tapetes um pouco desgastados preenchiam o chão, ao lado de cada cama uma pequena mesa com uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. As gavetas que cada mesa tinham serviam para os mais novos guardarem os seus pertences e as suas coisas, mas tinham que ter cuidado com o que escolhiam para lá deixar pois eram revistados todos os dias. A parede tinha apenas um quadro que mostrava um pastor a tentar controlar as suas ovelhas, preto e branco. Sem rádio. Sem televisão. Sem nenhuma distracção.
Miguel abriu os olhos de modo preguiçoso, os seus ouvidos ainda demoraram alguns segundos a assimilar as palavras da senhora Madalena. A idosa batia com uma panela contra outra panela exigindo que os quatro ocupantes daquele quarto acordassem.

- Vamos lá, jovens! São horas de acordar!
O rapaz observou os outros três companheiros de divisória a levantarem-se num ritmo muito mandrião. Porém, assim que a velha ameaçou chamar o senhor Jorge, todos eles sem excepção aceleraram as suas acções. A senhora Madalena saiu para continuar o seu serviço de despertar.
- Vamos. – disse Vasco – Temos que estar na mesa daqui a pouco.
- Esperamos por ele? – questionou Guilherme – Pelo Miguel?
- Nem pensar. – respondeu Vasco subindo o seu tom de voz para ter certeza que Miguel ouvia – Ele que se lixe.
- Vamos lá então, senão o senhor Jorge fica furioso – alertou Nuno – E é a última coisa de que precisamos.

Os três saíram do quarto, Miguel saiu da cama e começou a vestir-se. Ao longe continuava a ouvir o barulho das panelas. Não fazia ideia das horas, olhou à sua volta e não havia por ali um relógio sequer. Subitamente, um barulho alertou-o para a porta, virou as suas atenções para lá e pareceu-lhe ver um vulto a desaparecer de repente. Não desviou os olhos da porta, sabia que estava ali alguém. Os cabelos negros, longos e desalinhados denunciaram uma rapariga, dos seus aparentes dez anos. Ela, de olhar esverdeado amedrontado e rosto sujo, espiava o jovem.

- Quem és tu? – perguntou Miguel – O que é que fazes aqui?A rapariga não respondeu. Mas não foi preciso esperar muito tempo para que o rapaz ficasse a conhecer o nome dela. Vindo do nada, um senhor balofo e bigode esticado apanhou a miúda pelas orelhas.

- O que é que já te avisei, Vânia? – interrogou o homem – Quantas vezes vou ter que te repetir que não te quero a andar pelos corredores?  - de seguida, o homem fixou o seu olhar em Miguel – E tu! Já são mais que horas de estares na mesa! A tua sorte é que é o teu primeiro dia senão haveria castigo.
Assim que o homem saiu com a rapariga, Miguel sentou-se na cama atordoado com toda aquela estranha situação. Assim que se recompôs acabou de vestir-se e foi para a mesa de pequeno-almoço.

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