Levantei-me por volta das nove horas no dia
seguinte, tomei o pequeno-almoço, a minha mãe tinha se esmerado tal era a
alegria dela. Leite, café, torradas, queijo, ovos...senti-me em Inglaterra.
Come bem. - ordenou a mamã – Não quero que te sintas
fraco.
Está bem, mãe – arrumei uns livros na mochila
enquanto acabava uma torrada – Não te preocupes.
O que é que levas aí?
Livros, histórias e lendas da vila, coisas do
género. Tenho que estudar bem a história daqui não é?
Ai, estou tão orgulhosa de ti! - exclamou a minha
mãe beijando-me a testa – Vais ser o melhor museolista do mundo!
Não tenho a certeza que seja museolista que se diz –
respondi sorrindo – Mas espero ser algo parecido.
Acabei o café e tirei a bicileta da garagem, se eu
quisesse em cinco minutos estaria lá, mas preferi dar uma volta pela vila
primeiro pois lembrei-me da entrevista do dia anterior em que o homem exigiu
que eu não fosse antes das dez. Não podia começar a aborrecer o patrão logo no
primeiro dia do trabalho. Volta, atrás de volta deparei-me com a Eva. Ainda não
vos falei dela pois não? Um pouco mais baixa do que eu, elegante, olhos azuis,
cabelos loiros, uma verdadeira ninfa...Ela vinha montada na sua bicicleta, com
um deslumbrante vestido de praia azul celeste e uma toalha.
Olá, Miguel – cumprimentou – Vais para onde?
Olá, Eva – retribui – Para o museu. Começo a
trabalhar hoje lá.
A sério? Arranjaste trabalho? Fico muito contente
por ti! - exclamou – Tenho que lá aparecer para te fazer uma visita.
E tu? - perguntei – Para onde vais? E não tens frio
só com esse vestido?
Tu já sabes como eu sou – sorriu – Isto para mim não
é frio nenhum...é o que acontece quando se vive quase dez anos nos países
nórdicos...vou para a piscina coberta, sabes que eu amo nadar. Tens que ir
comigo um dia destes.
Claro! - respondi sem me aperceber no entusiasmo que
saiu da minha boca sem eu contar – Quer dizer, sim, depois podemos ver isso.
Agora tenho mesmo que ir.
Eva despediu-se e eu comecei a subir a estrada para
o museu, faltavam cinco minutos para as dez, a estrada era de paralelos e além
das poucas casas que o monte da piedade, era assim que se chamava o sítio onde
o edífico estava implantado, esse mesmo monte também acolhia o cemitério da
vila, a estrada dividia-se em dois, para o lado direito era o museu, para o
lado esquerdo era uma velha capela já com mais de trezentos anos e o cemitério
onde eu gostava de pôr os pés o menos possível.
Enquanto subia comecei a ouvir alguém cantar,
travei, a alguns metros de mim estava uma criança, um vulto de branco virada de
costas. Parecia demasiado nova para andar sozinha.
Olá? - cumprimentei – Estás por aqui sozinha? Os
teus pais?
Os meus pais...os meus pais...- repetia cantarolando
– os meus pais...
A criança comecou a fugir para o lado do cemitério,
gritei para ela parar mas ela continuo a correr, fui atrás dela, parei na
entrada do cemitério, sai da bicicleta e entrei.
Onde estás tu? - questionei – Miúda!
Nenhuma resposta. Continuei a avançar pelas campas,
que arrepio na espinha, odiava aquele sítio...ao fundo do cemitério uma senhora
de idade colocava flores em uma campa, corri até ela.
Minha senhora, por favor, viu por aqui uma criança
pequena? - interroguei – Ela está vestida de branco.
A mulher virou a sua cara para mim e dei um salto
para trás, os seus olhos eram de uma cor muito clara, engoli um seco, o que ela
pensaria de mim...perguntar a uma cega se viu alguém...
Desculpe...não sabia – suspirei – Mas...ouviu algum
barulho estranho?
Meu jovem – comecou enquanto continuava a colocar as
flores – Não é preciso ter os olhos de um morcego para que a possas ver.
O quê? Como assim? - perguntei confuso – o que isso
quer dizer?
Tudo a seu tempo – disse enquanto pegava na sua
bengala – Meu jovem – apalpou-me a cara como se fosse desenhado na sua mente o
meu aspecto – Tão jovem...
Obrigado pela ajuda – olhei para o relógio – Merda! Dez
e quinze! Se o homem está a minnha espera já estou lixado.
Gritei mais uma vez pela rapariga, novamente nenhuma
resposta, saí do cemitério e dirigi-me ao museu, uff, o homem não estava por
lá, abri a porta, cá estavamos nós...no primeiro dia do museu.
Passou-se uma semana. Nunca mais vi a miúda. Comprei
jornal atrás de jornal não fosse a cara dela aparecer na secção de
desaparecidos, era uma boa companhia, a leitura, pois durante a semana poucos
seres vivos deslocavam-se ao museu. Os meus melhores companheiros eram dois
modelos com trajes antigos que estavam em exposição. Sentia-me como o Tom Hanks
que teve que inventar um amigo no Cast Away, por vezes dava por mim a falar com
bonecos....impressionante, dois belos amigos que eu tinha arranjado.
Então o que é que vocês fizeram durante a minha
ausência? - perguntava às vezes – Portaram-se bem? Não quero por aí modelos
bebés. - convém esclarecer que tratava-se de um modelo masculino e de um modelo
feminino.
Nesse preciso momento ouvi um carro estacionar, fui
à entrada e vi um carocha azul com um aspecto novíssimo e de lá de dentro saiu
o responsável máximo do museu encaminhava-se lentamente para a entrada. Uma
semana depois o homem dava sinais de vida. A meio do caminho parou, um pequeno
pássaro estava pousado no chão, com um movimente rápido o velho espetou a
bengala no peito do pobre animal e elevou-o no ar.
São vírus. Todos os animais são vírus. Carregam
doenças. Até nós. É preciso livrar-nos das doenças. - disse atirando o bicho
para o monte – Antes que elas nos apanhem a nós. - caminhou para junto de mim –
Tens tido muitas visitas, meu jovem?
Durante a semana apenas cinco pessoas, mas no
fim-de-semana foram vinte.
Óptimo. - sorriu – Vinte e cinco não é mau para
começar – entrou e sentou-se na cadeira da recepção – Abomino gente que não
quer saber das suas raízes, com um museu local são capazes de visitar os museus
da cidade e não colocar os pés neste. - retirou uma garrafa pequena com um
liquido estranho do bolso e deu um gole - Como odeio o mundo.
O senhor precisa de alguma coisa? - questionei –
Posso arranjar-lhe algo?
Não. - respondeu – Só quero relembrar-te que nunca
antes das dez da manhã ou depois das cinco da tarde poderás estar aqui –
apontou com a bengala para o meu rosto – Nunca!
O homem regressou ao carro, abriu a porta e
sentou-se, ligou o rádio numa estação de música clássica e aumentou o volume
consideravelmente, deu novo golo na estranha garrafa e foi embora.
As palavras dele continuavam a ecoar na minha mente.
Nunca antes das dez...nunca depois das cinco...e ignorando a célebre expressão
“a curiosidade matou o gato” decidi que no dia seguinte ficaria depois das
cinco da tarde.
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